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CRÔNICA DO COTIDIANO: A Roda dos Expostos e o Racismo Brasileiro

“Sorriso negro/ Um abraço Negro/ Traz felicidade/ Negro sem emprego/ Fica sem sossego/E negro é a raiz da liberdade” (Sorriso Negro. Canção de Dona Ivone Lara e Jorge Ben Jor). Canto esse hino não para reivindicar qualquer “lugar de fala”, nem tampouco fazer “temáticas homenagens” no mês dedicado à rememoração e reverências à Cultura Negra, legítimas e necessárias, mas para dar um testemunho desse desassossego provocado pelo racismo e pelo desprezo ao “povo preto brasileiro”, como se brancos fôssemos.

De Dona Ivone Lara e Jorge Ben Jor, conhecemos seus divinos cantos, assim como os de Pixinguinha, de Cartola, de Gil e de tantos outros pretos de renome, alguns até sem o sentimento negro de Dorival Caymmi que, por ser “mulato”, teve o nome recusado para ocupar uma cadeira da Academia de Letras da Bahia, o que significa dizer: não mereceu ser visto como um “Preto de Alma Branca” (atributo normalmente dado aos pretos como elogio à sua dignidade assemelhada a dos brancos – expressão ridícula e ofensiva).

E tomo esse mote do Preto de Alma Branca para falar de um episódio que poderia ser corriqueiro, mas levei a sério. Tenho por costume ser fiel a tudo que dedico amor, confiança ou me dá prazer. Por mais de 30 anos fui cliente de uma padaria, que depois virou rede de padarias em Manaus, nascida no Conjunto Residencial onde eu morava. E, ao escolher um bolo exposto na vitrine para compra, deparei-me com o bolo denominado pela Padaria de “Bolo Preto de Alma Branca” e perguntei à atendente o porquê desse nome.

Disse-me que era muito apreciado, chocolate por fora e massa de bolo comum por dentro. Perguntei-lhe, ainda, se sabia que essa denominação era ofensiva às pessoas pretas. Respondeu-me que não, mas não via nada de ruim nisso.

Procurei o gerente e ele ficou rindo da minha preocupação e abordagem, mas disse-me que a casa fabricava aquele bolo há muito tempo e nunca ninguém reclamou. Disse a ele: sou cliente há mais de 30 anos dessa padaria, conheço os donos e não sabia disso; por favor, diga a eles que usar essa expressão para nominar qualquer coisa ou referir-se a qualquer pessoa é ofensivo e é crime. Ele fez cara de pouca importância e o bolo continuou lá. Cansado de esperar providências, comprei um bolo, fui ao gerente, novamente, e ameacei fazer a denúncia formal, levando como prova a etiqueta da padaria.

Isso não é querer ser bonzinho, é obrigatório para quem tem consciência da opressão ou sente na sua pele a “ofensa que dói”. Em outro caso, parenta minha, certa vez, disse ao lhe perguntarem sobre o primo: “é um rapaz muito esforçado e inteligente, mas lamento muito ter escolhido uma ‘mulata’ para casar”.

Talvez ouvisse a mesma coisa dos meus avós, “arigós” que se consideravam brancos e eram preconceituosos, como todos do seu tempo, muitos dos quais como uns que conheci, que negavam até a bênção aos netos, frutos do casamento da filha “branca” com um preto (chamada ofensivamente de Barriga Suja).

O mundo é cruel, que o digam o jogador Vini Jr., os alunos da USP que foram humilhados como “pobres e cotistas” pelos alunos da PUC/SP, outrora baluarte dos Direitos Humanos. Embora, alunos de ambas (USP e PUC/SP), tenham lá alguns outros pecados.

O racismo não é, apenas, um sentimento pessoal. Entre nós, é coletivo, com exceções raras e que, mesmo assim, vez ou outra nos trai. Por isso, tem sido tratado como Racismo Estrutural (Sílvio Luiz de Almeida), incrustado nas instituições e reproduzido nos atos de fala, nas posições sociais e no próprio sistema social e de vida. Para outros, que não adotam essa categoria de análise, é intrínseco à formação social escravista e muito mais que isso, a “coisa” que não se apaga como passado: “é um barco ancorado num mar morto. Em outras palavras, a forma escravista constitui uma ‘imagem de mundo’ que concilia a imobilidade do tempo pretérito com a superfície de transformação das relações sociais. E nada disso se explica pela reflexão filosófica: o controle do passado pelas elites dirigentes é fundamentalmente político, por ser parte do domínio sobre o presente e o futuro” (SODRÉ, Muniz. O Fascismo da Cor. Petrópolis: Vozes, 2023, p.175).

Por isso, tratar o Racismo e a luta dos pretos como mera parte expressiva dos Identitarismos é jogá-la na “Roda dos Exposto” é mais uma das crueldades que a sociedade brasileira pode fazer, sobretudo se tais ideias prosperarem na discussão da esquerda e surtirem algum efeito!

Texto: Walmir de Albuquerque Barbosa – Jornalista

Foto; Divulgação

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